Estamos vivendo um dos futuros previstos pela ficção científica, aponta estudo.

Em 1950, o matemático britânico Alan Turing (1912-1954), um precursor da computação, sugeriu que a indagação “As máquinas podem pensar?” fosse substituída por um método operacional mais prático. Ele concebeu o que chamou de “jogo da imitação”, onde um interrogador humano deveria, através de interações escritas, determinar se estava dialogando com outra pessoa ou com uma máquina. Se a máquina conseguisse convencer um número considerável de avaliadores de sua humanidade, então estaria, de acordo com uma definição sensata, pensando. O que hoje chamamos de “Teste de Turing” não seguia um protocolo rígido e definido; tratava-se mais de uma provocação filosófica com o intuito de questionar a rigidez mental de seus interlocutores. Contudo, hoje, 75 anos depois, qualquer usuário de plataformas de inteligência artificial generativa (IAG), como o americano Chat GPT e o chinês DeepSeek, pode perceber que as máquinas já superaram esse teste: a precisão de suas respostas e a complexidade de suas expressões frequentemente superam a de muitos diálogos humanos.

Atualmente, estamos vivendo um dos futuros que antes pertenciam à ficção científica. O artigo “Passed the Turing Test: Living in Turing Futures” explora a relevância do Teste de Turing no contexto atual, examinando o histórico do conceito, sua influência sobre o desenvolvimento da IAG e suas implicações técnicas, sociais e filosóficas. O autor, que possui doutorado em modelagem computacional e filosofia, atuou como pesquisador no King’s College da University of Cambridge e atualmente pesquisa no Laboratório Nacional de Computação Científica, além de ser associado ao Centro de Inteligência Artificial na USP. Em seu texto, publicado na revista Intelligent Computing, ele destaca que Turing argumentou que a inteligência humana é, em grande parte, um fenômeno pouco conhecido e indefinido, e que o comportamento observável seria a melhor forma de avaliar a inteligência artificial. Sua proposta desafiou a crença na singularidade da mente humana e tornou-se um marco no progresso da IA.

A proposta de Turing também deixou sua marca na cultura popular. Um exemplo disso é o icônico filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, que apresenta o supercomputador HAL-9000, representando uma IA avançada capaz de passar no Teste de Turing e levantando questões sobre a autonomia e a confiabilidade das máquinas. No contexto real, marcos da história incluem o supercomputador Deep Blue, da IBM, que derrotou o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov em 1997, e o Watson, também da IBM, que venceu dois grandes campeões do programa “Jeopardy!” em 2011.

Gonçalves ressalta que uma observação perspicaz de Turing foi a de que a inteligência artificial não poderia ser exclusivamente dependente de uma programação explícita, mas deveria simular o aprendizado autônomo, semelhante ao desenvolvimento da inteligência humana. Essa visão o levou a prever que, no final do século 20, as máquinas aprenderiam a imitar o “jogo da imitação” de maneira convincente, e que o conceito de “máquinas pensantes” se tornaria comum entre os mais instruídos. O tipo audacioso de linguagem que Turing usava, referindo-se a “máquinas pensantes”, estava embasado na incerteza de compreendermos plenamente o que é a inteligência humana.

O trabalho argumenta que os modelos atuais de IAG, sustentados por transformadores e aprendizado profundo, não apenas simulam as respostas humanas, mas conseguem aprimorar seu desempenho sem depender exclusivamente da programação anterior. À medida que o treinamento avança, certas funções não programadas emergem, permitindo que as máquinas mantenham diálogos de maneira convincente e coerente, mesmo com pessoas leigas. A inovação trazida pelos transformadores reside em seu mecanismo de atenção, que permite que o modelo se concentre em diferentes partes da entrada ao processar dados específicos, tornando-os mais eficientes do que as arquiteturas anteriores, que tratavam os dados de forma sequencial e, por consequência, mais lenta. A aprendizagem profunda, uma vertente do aprendizado de máquina, permite que os modelos aprendam diretamente com os dados, sem a necessidade de intervenção humana para extração de características. Esses dois componentes, transformadores e aprendizado profundo, são fundamentados em redes neurais que imitam o funcionamento da neurologia humana.

“Stuart Shieber, cientista da computação da Universidade Harvard, demonstrou que criar uma IA baseada apenas em memorização é impraticável, uma vez que a quantidade de armazenamento exigida para abarcar todas as possibilidades de interação excederia o universo conhecido”, argumenta Gonçalves. Ele ainda aborda as implicações sociais do avanço da inteligência artificial, lembrando que Turing não apenas previu a substituição de trabalhadores manuais, mas também indicou que até mesmo os “mestres” poderiam ser substituídos, indicando que a automação abrange não apenas funções operacionais, mas também áreas intelectuais. “Para garantir que os frutos da IA sejam distribuídos de maneira justa, um debate mais amplo sobre a repartição da riqueza gerada pela automação é necessário. Isso ecoa a visão de Turing, que defendia que a tecnologia deveria beneficiar a sociedade como um todo e não apenas os interesses econômicos de uma minoria”, conclui.

Outro aspecto destacado no artigo é a insustentabilidade do modelo computacional atual. O uso de energia pelos sistemas modernos de IA é enorme, contrastando com a perspectiva de Turing, que defendia um modelo mais inspirado pelas características naturais do cérebro humano, que consome muito menos energia. Gonçalves sugere que a IA deve progredir em direção a uma abordagem mais sustentável e menos suscetível a dependência de computação superintensiva. O artigo termina sugerindo que, à medida que a inteligência artificial se torna mais complexa, são necessárias novas formas de avaliação, inspiradas no Teste de Turing original. Ele propõe a utilização de rigorosos protocolos estatísticos para evitar que a IA simplesmente aprenda a ludibriar os testes tradicionais; testes automatizados adversariais, eliminando a necessidade de avaliadores humanos e, assim, tornando as avaliações mais objetivas; e verificações baseadas em aproximações probabilísticas para tornar as avaliações das máquinas mais práticas e eficientes. “Essas abordagens ajudariam a lidar com desafios emergentes, como vieses nos dados de treinamento, manipulações adversais e contaminações de modelos com informações previamente conhecidas”, sublinha Gonçalves.

É importante lembrar que o Teste de Turing foi proposto há 75 anos, em um momento em que os primeiros computadores estavam apenas começando a ser idealizados e construídos. Alan Turing estava à frente desse processo. O filme “O Jogo da Imitação” de 2014 retrata uma parte de sua vida, marcada por grandes realizações e tragédias. Entre suas vitórias está a decifração do código Enigma, que era considerado inviolável e utilizado pela Alemanha nazista para a troca de mensagens, um feito que salvou inúmeras vidas e teve um impacto significativo na derrota do nazifascismo durante a Segunda Grande Guerra Mundial. No entanto, essa contribuição permaneceu oculta por décadas, já que seu trabalho foi realizado em total segredo.

Em 1952, Turing foi condenado por “indecência grave” por causa de sua homossexualidade, atividade considerada ilegal no Reino Unido na época. Diante da perspectiva de uma pena de prisão, ele escolheu submeter-se a um tratamento hormonal forçado, que equivalia a uma forma de castração química. Em 7 de junho de 1954, ele foi encontrado morto em sua residência, e a causa oficial foi atribuída a um suicídio por envenenamento com cianeto. Somente em 2009 o governo britânico se desculpou formalmente pelo tratamento a que foi submetido. Em 2013, após mobilização pública intensa, Turing recebeu um “perdão real” postumamente.

“Estamos, de fato, vivendo um dos ‘futuros de Turing’, onde as máquinas conseguem replicar a cognição humana a tal ponto que se tornam indistinguíveis em algumas interações. Isso não implica que a inteligência artificial tenha atingido sua máxima capacidade. Persistem desafios fundamentais, como a sustentabilidade computacional, a equidade na distribuição dos benefícios gerados e a demanda por métodos de avaliação mais robustos. A visão de Turing continua sendo mais pertinente do que nunca, servindo não apenas como um critério técnico, mas também como um ponto de partida para discussões mais profundas sobre o impacto da IA na sociedade e na humanidade”, conclui o texto.

O artigo “Passed the Turing Test: Living in Turing Futures” pode ser acessado em: https://spj.science.org/doi/10.34133/icomputing.0102.

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